quarta-feira, 24 de abril de 2013

978 - JORNAL DO FUNDÃO



978

24 Abr 2013, 15:48h
EDITORIAL DO JORNAL DO FUNDÃO

Depois da longa noite, veio a madrugada

O MANTO negro do medo caiu numa madrugada de abril de 1974. Faz hoje 39 anos em que o país acordou combalido com as notícias que chegavam de Lisboa, onde uns bravos estavam, de uma assentada, a colocar um ponto final num capítulo de mais de 40 anos de Estado Novo e a abrir páginas alvas para o futuro, onde pudéssemos escrever, em conjunto, a palavra “esperança”. Portugal redescobriu-se nessa aurora que acabou com a longa noite do Estado Novo, perfeito anacronismo para uma duradoura ditadura numa Europa Ocidental há muito em marcha pelo desenvolvimento económico e social, sobre os carris da democracia.
O capítulo, que os militares encerraram nesta madrugada, deixou marcas em várias gerações. Mas Portugal redescobriu-se. Sonhou, estabilizou-se e atalhou caminho na procura das conquistas que lhe estiveram vedadas. Construiu-se um serviço nacional de saúde, um amplo sistema de ensino público, a garantia de segurança social. A liberdade fez-se mais do que bela palavra lançada ao vento, embalada pelo sonho. A liberdade também se construiu quando todos, independentemente da sua capacidade financeira, tiveram acesso a cuidados de saúde. A liberdade veio efetivamente ao nosso encontro quando nos pudemos sentar nos bancos das escolas e das universidades e ter pleno direito à educação. A liberdade consumou-se quando se criou um sistema redistributivo que garantia que quem não fosse bafejado pelas oportunidades, não ser abandonado pelos seus concidadãos à indigência e à miséria.
Comparar os indicadores sociais daquele Portugal saído da longa noite da ditadura e os deste Portugal é olhar para dois países antagónicos: desde a taxa de analfabetismo, à mortalidade infantil, ao acesso ao ensino superior, à esperança média de vida. Muito mudou nestes 39 anos. Construímos coletivamente um outro país. Sabemos, porém, que o caminho não esteve isento de percalços, de erros e omissões. Nem está. Atualmente, noutro contexto, Portugal está perante nova encruzilhada, ou melhor, um teste de resistência.
Celebra-se hoje aquela madrugada que Sophia nos deixou imortalizada como “O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”. Estamos num ponto de não retorno do nosso percurso coletivo. Os grilhões da ditadura ficaram lá atrás, e, agora, estamos perante outro desafio: o de preservar as fundações deste país que se fez de novo. As amarras com que nos debatemos já não são as do Estado Novo que nos legou um país velho, arredado da democracia, do desenvolvimento económico e social. A nossa responsabilidade, agora, é a de manter a solidez das fundações que nos permitiram que o sonho da liberdade se efetivasse não só no livre pensamento, na livre expressão, na democracia, mas também naquela liberdade de não privar os cidadãos de um país dos seus direitos mais básicos, como a saúde, a educação ou o apoio social. O papel histórico que nos cabe coletivamente, hoje, quase 40 anos depois, é o de resistir à pressão sobre as fundações que foram construídas ao longo destas últimas quatro décadas. Não é pouco. É demasiado. É manter viva a nossa madrugada.
Por: Nuno Francisco


O dia do milagre perfeito

por BAPTISTA-BASTOSHoje
Olho para os rostos destes que nos têm governado e não reconheço neles qualquer semelhança com os nossos rostos comuns. Observem bem: abreviados, ausentes. As sombras que neles poisaram são repintadas de vigílias tétricas em que se arredaram o bater comovido do coração humano e o pulsar da mais escassa ternura. Como conseguem viver nesta miséria de fazer mal, de nos fazer mal? Têm-nos extorquido tudo e ainda querem mais, numa obscura vingança, cujo propósito decidido e inclemente é o de nos tornar infelizes.
Pobres sempre o fomos. O domínio de uma classe sobre as outras exige essa forma escabrosa de brutalidade. E sempre houve quem se prestasse ao papel de serventuário do poder. Mas leiamos a História e ela no-lo ensina a resistir e a combater. Vejam 1383, 1640, os Atoleiros, as Linhas de Torres, o 5 de Outubro, o 25 de Abril. "Salta da cama, Bastos; a revolução está na rua!" A Isaura beija-me: "Toma cuidado!" Andei por muitas, e ela demonstra, com serena apreensão, os receios que a assaltam. "Desta vez vou só escrever." Temos dois filhos, o terceiro nascerá em pleno festim da liberdade, atravesso a madrugada de Lisboa e as ruas já exprimem uma espécie de selvagem alegria. Foram despertas pela voz de Joaquim Furtado que, no Rádio Clube Português, avisa-as de que aí está "o dia inicial inteiro e limpo", por que esperávamos.
Chego ao jornal, o Diário Popular, claro!, e já lá estão o Corregedor, o Fernando Teixeira, o Abel, o Zé de Freitas, o Jacinto, o Magro, o Bernardino, o Zé Antunes. A tensão é muito grande, e o desassossego que se nos impõe torna os nervos numa teia reticular quase dolorosa. Olhamo-nos e vamos às nossas tarefas. Os telefones azucrinam, os telexes retinam, os gritos soltam-se. Correm as horas. Andamos, uns e eu, num vaivém entre o Carmo e o jornal. Até que a História retoma os seus direitos. "Zé", digo para o Zé de Freitas. "O fascismo caiu." As lágrimas corriam-nos. E ele: "Vamos lá ver, vamos lá ver." Céptico por muito ter visto e em excesso ter sonhado. Telefona-me, de Beja, o Manuel da Fonseca. "Vem para Lisboa! Caiu o fascismo!" Ele: "Eh pá! Eh pá! Eh pá!" Mais nada; não era preciso dizer mais nada. "Não te esqueças de mandar provas à Censura", avisa o Fernando Teixeira. E o Zé de Freitas: "Ó Fernando, nesta altura, a Censura já foi para a p... que a pariu!"
Onde é que eu estava no 25 de Abril? Onde devia estar: com os meus camaradas inesquecíveis, a ajudar a escrever um jornal exacto, infalível, jubiloso, exaltante e alvoroçado. Este número não foi visado pela Comissão de Censura.
Vocês, reverentes e autoritários, não têm nada disto, nem nada a ver com isto. Memórias de um dia que se não fazia noite, um dia elementar e tão claro e liso como um milagre perfeito.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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