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PENSAR PORTUGAL
Pensar
Portugal
Pensar
Portugal é pensá-lo no que ele é e não iludirmo-nos sobre o que ele é. Ora o
que ele é é a inconsciência, um infantilismo orgânico, o repentismo, o
desequilíbrio emotivo que vai da abjecção e lágrima fácil aos actos grandiosos
e heróicos, a credulidade, o embasbacamento, a difícil assumpção da própria
liberdade e a paralela e cómoda entrega do próprio destino às mãos dos outros,
o mesquinho espírito de intriga, o entendimento e valorização de tudo numa
dimensão curta, a zanga fácil e a reconciliação fácil como se tudo fossem rixas
de família, a tendência para fazermos sempre da nossa vida um teatro, o berro,
o espalhafato, a desinibição tumultuosa, o despudor com que exibimos facilmente
o que devia ficar de portas adentro, a grosseria de um novo-rico sem riqueza, o
egoísmo feroz e indiscreto balanceado com o altruísmo, se houver gente a ver ou
a saber, a inautenticidade visível se queremos subir além de nós, a
superficialidade vistosa, a improvisação de expediente, o arrivismo, a
trafulhice e o gozo e a vaidade de intrujar com a nossa «esperteza saloia», o
fatalismo, a crendice milagreira, a parolice. Decerto, temos também as nossas
virtudes. Mas, na sua maioria, elas têm a sua raiz nestas misérias. Pensar
Portugal? Mas mais ou menos todos sabemos já o que ele é. O que importa agora é
apenas «pensá-lo» — ou seja, pôr-lhe um penso...
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 2'