sábado, 10 de outubro de 2015

1706 - «TABACARIA» FERNANDO PESSOA

1706

                      TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém
                                                                        [sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente
                                                                         [por gente
Para  uma rua inacessível  a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a põr humidade nas paredes e cabelos brancos
                                                                           [nos homens.
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada
                                                                                 [de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade..
Estou hoje lúcido, como se estivesse  para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da
                                                                                        [rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela  dos meus nervos e um ranger de ossos
                                                                                 [na ida.


Estou hoje perplexo , como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria  do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode
                                                                       [haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um.
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas
                                                                           [certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou
                                                                            [menos certo?
Não, nem em mim..

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres elícidas --
Sim, verdadeiramente altas e nobres  e lúcidas --,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que
                                                                   [tenha razão
Tenho sonhado mais que o Napolião fez.
Tenho apartado ao peito hipotético mais humanidades do
                                                                   [que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda.
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao
                                  [pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim ? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo.
E o resto que venha se vier ou\tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocales!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com
                                                                         [que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha
 .                                                                           [de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem
                                                                       [lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu, que consolas, que não existes, e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patricia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida.
Ou marquesa do século dezóito, decotada e longíncua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,,
Ou não sei o quê moderno -- não concebo bem o quê --
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que
                                                                               [inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam.
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo.
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)




Vivi, estudei, amei, e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por ser eu,
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses
                                                                          [nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
                                                                       [nada disso);
Talves tenhas  existido apenas, como um lagarto a quem
                                                                       [cortaram o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.


Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
                                                                     [perdi-me.
Quando quiz tirar a máscara,
Estava pegada à cara,
Quando a tirei e mi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
                                                                            [tirado,
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te  como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a lingua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo
                                                    [de coisas como tabuletas.
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como outra.
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tao certo como o sono de
                                                     [mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem
                                                                                   [outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido,  humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos,
Sigo o fumo como uma rota própria,
E goso, num momento sensitivo e competente,
A  libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
                                                                 [estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isso, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da tabacaria (metendo troco na algibeira
                                                                       [das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tsbacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me,
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me  sem ideal nem esperança, e o dono da
                                                             tabacaria sorriu.
                                                
                                                   15-1-1928
FERNANDO PESSOA
                                                                    

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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

1705 - POEMA DO MENINO JESUS - FERNANDO PESSOA

1705

POEMA DO MENINO JESUS

                                                    (Veja também no youtube)

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino.
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça.
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas....
Um velho chamado José, que era carpinteiro.
E que era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o espírito santo andava a voar
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol 
E desceu pelo primeiro raio que  apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esqAuece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo .coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no é estúpido como a Igreja Católica.
Dis-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou  --
»Se é que ele as criou, do que duvido«  --
Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória.
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada.
E por isso se chamam seres»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
É por isso  é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três  pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre. 
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu uovido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorrí, porque tudo é incrível.
Ri dos dos reis e dos que não são reis
E tem pena de ouvir falar nas guerras,
E dos comércios, e dos navios 
Que ficam fumo ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta aquela verdade
Que uma flor tem ao florescer 
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales 
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deit-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu .

Ele dorme dentro de minha alma
E às vezes acorda noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho.
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro  da tua casa
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde.
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos  teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus.
Porque razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

FERNANDO  PESSOA

















domingo, 4 de outubro de 2015

1704 - THE TRAVAIL OF PASSION - W. B. YEATS

1704

THE TRAVAIL OF PASSION

When the flaming lute-thonged angelic door is wide;
When an immortal passion breadthes in mortal clay;
courge,Our hearts endure the scourge, the plaited thorns, the way
Crowded whit bitter  faces, the wounds in palm and side,
The vinagar-heavy sponge, the flowers  by Kedron stream;
We will bend down and loosen our hair over you,
That it may  drop faint perfume, and he heavy whith dew,
Lilies of death-pale hope, roses of passionate dream.

                               ***

Quando a flamejante e angélica porta se abre num
                                                                 tumulto de alaúdes,
Quando imortal paixão respira em mortal argila,
O nosso coração o flagelo, a coroa de espinhos, o caminho
Povoado de rostos amargos, a ferida das mãos, 
                                                                a ferida dos flancos,
A esponja pesada de vinagre, as flores junto ao rio Kedron;
Sobre ti inclinados soltaremos os cabelos
Para que leve perfume se desprenda, cheio de orvalho,
Lírios da esperança em sua mortal palidez, rosdas de 
                                                                    apaixonado sonho.

W. B. Yeats