segunda-feira, 29 de novembro de 2010

015-A coisa está preta

015-A Europa está madura para grandes transformações políticas e sociais, como no tempo da revolução francesa ou da revolução soviética. Agora, as exigências são outras: mais democracia, mais transparência. mais rigor nas contas públicas, melhor distribuição  da riqueza produzida. As velhas soluções protagonizadas pelos partidos comunistas (entre nós pelo PCP e pelo BE) caducaram e, por isso, não mobilizam o descontentamento resultante da profunda crise  em que vivemos. Ninguém produz uma ideia nova, um rumo - partir a loiça toda para construir de novo. A filosofia alemã não produziu, em mais e um século, um outro Marx (ou mesmo um Hegel  ou um Engls), Heidegger não deu uma para a caixa. A senhora Merkel (que não foi bafejada pela filosofia alemã) reúne num só corpo o pior das «duas» Alemanhas. Os socialistas, os sociais-democratas, os liberais ou democratas-cristãos andam todos aos papéis no caixote do lixo: estão à espera que o mundo  volte a ser o que era. Não volta. E se não volta o que está para a frente é algo diferente, ainda indecifrável. Este era o momento da Europa  dar o murro na mesa. Para sobreviver. Para decifrar o futuro. Mas não há pensamento político consistente que sustente o murro. E todos têm medo de partir o pulso, em vez de partir a mesa. Os «mercados financeiros» agradecem a inércia, enquanto por cá há quem acredite que um Passos Coelho ou um Paulo Portas podem resolver a situação. Haja juízo.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

016-AOS MEUS VISITANTES





016-NO FIM DESTA PÁGINA EXISTEM TRÊS BARRAS DE VÍDEO:
      a)    O primeiro vídeo da primeira barra é o poema para   
             Galileu dito pelo autor: António Gedeão
      b)   O primeiro vídeo da segunda barra são as mais belas   
             paisagens
        c)   O primeiro vídeo da terceira barra (direita) é "Lisboa
             Menina e Moça".

Tome nota: quando clicar num vídeo e ele arrancar;  se clicar uma segunda vez no mesmo vídeo ele fica posicionado no
YouTube
Tenho a certeza de que vai gostar!

UMA IMAGEM VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS

ASB, 21 de Novembro 2010

NOTA:  O "Poema para Galileu" foi postado como António Gedeão e foi publicado no dia 7 de Setembro de 2010 podendo portanto ser encontrado no mês de Setembro.

domingo, 14 de novembro de 2010

017-Do mercado do Bolhão ao mercado da dívida

017-Os juros da dívida pública atinjiram, esta manhã, 7,1%, no « mercado da dívida» - palavra que entrou definitivamente no nosso bocabulário. Antes, abasteciamos-nos no mercado da Ribeira e no mercado do Bolhão. Hoje, perdidas as tradições, abastecemo-nos no «mercado da dívida». Mas há . As mudanças dos hábitos de consumo dos portugueses, (deixámos de frequentar os mercados tradicinais para entrarmos na voragem dos centros comerciais, dos stands de automóveis e nas agências de viagens), e a mudança dos meios de pagamento (substituindo as notas do Banco de Portugal que nos eram entregues como remuneração pelos cartões de crédito ilimitado) levaram-nos a percorrer o caminho  até ao «mercado da dívida». Foi o ciclo do crescimento assente no investimento público e no consumo inaugurado pelos governos de Cavaco Silva e pela integração europeia. O Estado, as empresas e as famílias entregaram-se ao ao deboche e não mais pararam de aumentar as despesas. A crédito, obviamente. A produção de riqueza não chegava para tanto esbanjamento. Agora, mesmo os mais optimistas já perceberam  que temos de voltar aos mercados da Ribeira e do Bolhão. Nunca a expressão Vais pagar e com juros foi tão adequada à nossa situação.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

018-E ainda a procissão vai no adro

018-Os dirigentes do País (de qualquer partido) acostumaram-se a empurrar, nas alturas de crise, as responsabilidades por ela para as vítimas dela. É o seu estratagema de impunidade.
      Insidiosamente, os trabalhadores vêem-se, assim, invectivados por não produzirem, os desempregados por não  se haverem modernizado, os jovens sem colocação por se mostrarem impacientes de consumismos, os reformados por adornarem a sustentabilidade da previdência social, os doentes crónicos por serem viciados em gulodices farmacológicas, em saborosos internamentos hospitalares e intervenções cirúrgicas.
      Tornou-se, aliás, hábito aparecerem em público uns senhores de rostos severos a admoestarem-nos por «gastarmos mais do que ganhamos» e «ganharmos mais do que produzimos»; por, nas suas enfáticas palavras «vivermos acima das nossas possibilidades».
      Não se sabe, entretanto, nem ninguém cuida de explicar, o que isso realmente significa. Sabe-se, sim, que vários dos notáveis em causa auferem regalias multi-milionárias apesar (talvez por isso) de serem co-responsáveis pelo desequilíbrio a que chegamos.
      Subir o nível de vida dos portugueses constituíu (é bom não esquecê-lo), o isco utilizado para as populações morderem a Revolução, a democracia, a liberdade, a igualdade, então lançado  nas águas onde, expectantes, barbateávamos. Para o manter abaixo (ou dentro) das nossas míseras possibilidades, já bastava a sovinice do regime anterior.
       O povoléu atirou-se às promessas (paradisíacas) dos novos poderes  como gato a bofe. As nacionalizações que a esquerda mais destemida fez garantiam, por outro lado, que iríamos aboletar-nos, sem suar as estopinhas, com grossas maquias de empresas, fábricas, bancos, herdades, prédios, indústrias e comércios expropriados aos capitalistas fascistas.
      A  CEE ajudou, depois, à festa com fundos rapinados a preceito.
      Num ápice, novas, expeditas classes ascenderam no País preferindo, porém, fazê-lo em direcção a valores materiais do que culturais, o que  gerou um boom de light bastante ilustrativo.
      Ante solo tão fértil, adubado pelo colapso socialista, o liberalismo selvagem (passe o pleonasmo) emergiu, fomentando o consumismo que fomentou a massificação e, esta, a indiferenciação, a desistência, a apatia - em que nos afogamos.
      Colunistas de soalheiro e contabilistas de balcão inundam-nos, entretanto, de cenários, de estatísticas, de sondagens a sustentarem  medidas revigorantes (arrasantes) para a continuação da nossa débil sobrevivência - que a deles encontra-se salvaguardada.
       Temos, como consequência - e ainda procissão vai no adro -, falências e desemprego, miséria e aviltamentos em tsunami.
       O pequeno comércio (sustentáculo dos núcleos populacionais das cidades) a pequena agricultura (idem para os dos campos) caíram inanimados; 80 mil jovens andam à procura de um primeiro emprego, enquanto as famílias vêem 90 por cento dos seus rendimentos endividados; metade da população vive, segundo os critérios da CE (dos nossos são 22 por cento), a nível da pobreza.
        Em número crescente, crianças vão em jejum para as escolas, idosos deixam de tomar medicamentos, multidões dormem ao relento, semi-envergonhados comem de caixotes do lixo. Em muitas casas volta-se, como há 50 anos, a cozinhar em fogareiros de petróleo (o gás inacessibilizou-se), a tomar banho uma vez por semana, a ingerir apenas sopa às refeições, a deitar meias solas em sapatos.
       Fazer baixar o luxo que, dizem, praticamos é, avisam-nos, um imperativo inadiável, sob o risco das classes médias baterem (mais?) no fundo e perder-se o País.
       Irónicos, os mais vividos reduzem o que se ensaia a remake de Neo-Estado Novo, neo-fascismo anular de indomados.
      «Muita gente», avisava Cunha Rego, «sente-se já bem no mal e mal no bem».
       Fernando Dacosta

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

019-FERNANDO PESSOA (Álvaro de Campos)*


                                        019- TABACARIA

                            (O mais belo texto do mundo)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém 
                                                                                [ sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada  constantemente
                                                                                   [por gente
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos
                                                                                  [nos homens.
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de
                                                                                           [nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um combóio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na
                                                                                                                     [ida                                                                                                                                         
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou ?
Ser o que penso ? Mas penso ser tanta coisa !
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode
                                                                                  [haver tantos!
Génio ? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas
                                                                                 [certezas!
Eu, que não tenho nenhuma cereteza, sou mais certo ou menos
                                                                                        [certo?
Não, nem em mim ...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmo sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas --
Sim, verdadeiramente altas nobres e lúcidas --,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente ?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que
                                                                                  [tenha razão
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do
                                                                                    [que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu,
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que abrissem a porta ao pé de uma
                                                                     [parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus  num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me  a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver de vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da
                                                                                      [cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar  e a Via Láctea e o Indefinido.


(come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com
                                                                                 [que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha
                                                                                  [de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem
                                                                                      [lágrimas,
Nobre ao mesmo no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê de moderno - não concebo bem o quê - ,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que
                                                                                  [inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo  e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses
                                                                               [cresses
(porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
                                                                   [nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
                                                          [cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.


Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
                                                             [perdi-me
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
                                                                                      [tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou como um capacho que os cigamos roubaram e não valia
                                                                                   [nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como
                                                                                   [gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo
                                                  [de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra
Sempre uma coisa inútel como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de
                                                                 [mistério de superfície
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem
                                                                                        [outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E goso, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
                                                             [estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira
                                                                         [das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstrui-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da
                                                                    [Tabacaria sorriu.
      
                                                                               15-1-1928