quinta-feira, 11 de novembro de 2010

018-E ainda a procissão vai no adro

018-Os dirigentes do País (de qualquer partido) acostumaram-se a empurrar, nas alturas de crise, as responsabilidades por ela para as vítimas dela. É o seu estratagema de impunidade.
      Insidiosamente, os trabalhadores vêem-se, assim, invectivados por não produzirem, os desempregados por não  se haverem modernizado, os jovens sem colocação por se mostrarem impacientes de consumismos, os reformados por adornarem a sustentabilidade da previdência social, os doentes crónicos por serem viciados em gulodices farmacológicas, em saborosos internamentos hospitalares e intervenções cirúrgicas.
      Tornou-se, aliás, hábito aparecerem em público uns senhores de rostos severos a admoestarem-nos por «gastarmos mais do que ganhamos» e «ganharmos mais do que produzimos»; por, nas suas enfáticas palavras «vivermos acima das nossas possibilidades».
      Não se sabe, entretanto, nem ninguém cuida de explicar, o que isso realmente significa. Sabe-se, sim, que vários dos notáveis em causa auferem regalias multi-milionárias apesar (talvez por isso) de serem co-responsáveis pelo desequilíbrio a que chegamos.
      Subir o nível de vida dos portugueses constituíu (é bom não esquecê-lo), o isco utilizado para as populações morderem a Revolução, a democracia, a liberdade, a igualdade, então lançado  nas águas onde, expectantes, barbateávamos. Para o manter abaixo (ou dentro) das nossas míseras possibilidades, já bastava a sovinice do regime anterior.
       O povoléu atirou-se às promessas (paradisíacas) dos novos poderes  como gato a bofe. As nacionalizações que a esquerda mais destemida fez garantiam, por outro lado, que iríamos aboletar-nos, sem suar as estopinhas, com grossas maquias de empresas, fábricas, bancos, herdades, prédios, indústrias e comércios expropriados aos capitalistas fascistas.
      A  CEE ajudou, depois, à festa com fundos rapinados a preceito.
      Num ápice, novas, expeditas classes ascenderam no País preferindo, porém, fazê-lo em direcção a valores materiais do que culturais, o que  gerou um boom de light bastante ilustrativo.
      Ante solo tão fértil, adubado pelo colapso socialista, o liberalismo selvagem (passe o pleonasmo) emergiu, fomentando o consumismo que fomentou a massificação e, esta, a indiferenciação, a desistência, a apatia - em que nos afogamos.
      Colunistas de soalheiro e contabilistas de balcão inundam-nos, entretanto, de cenários, de estatísticas, de sondagens a sustentarem  medidas revigorantes (arrasantes) para a continuação da nossa débil sobrevivência - que a deles encontra-se salvaguardada.
       Temos, como consequência - e ainda procissão vai no adro -, falências e desemprego, miséria e aviltamentos em tsunami.
       O pequeno comércio (sustentáculo dos núcleos populacionais das cidades) a pequena agricultura (idem para os dos campos) caíram inanimados; 80 mil jovens andam à procura de um primeiro emprego, enquanto as famílias vêem 90 por cento dos seus rendimentos endividados; metade da população vive, segundo os critérios da CE (dos nossos são 22 por cento), a nível da pobreza.
        Em número crescente, crianças vão em jejum para as escolas, idosos deixam de tomar medicamentos, multidões dormem ao relento, semi-envergonhados comem de caixotes do lixo. Em muitas casas volta-se, como há 50 anos, a cozinhar em fogareiros de petróleo (o gás inacessibilizou-se), a tomar banho uma vez por semana, a ingerir apenas sopa às refeições, a deitar meias solas em sapatos.
       Fazer baixar o luxo que, dizem, praticamos é, avisam-nos, um imperativo inadiável, sob o risco das classes médias baterem (mais?) no fundo e perder-se o País.
       Irónicos, os mais vividos reduzem o que se ensaia a remake de Neo-Estado Novo, neo-fascismo anular de indomados.
      «Muita gente», avisava Cunha Rego, «sente-se já bem no mal e mal no bem».
       Fernando Dacosta

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