543-Anquilose civilizacional
UM DIA destes, a propósito das malfeitorias que a história regista no seu inventário de crimes contra a humanidade, que parece interminável, alguém escrevia no “El Pais” que, olhando para o redor do mundo e a sua matéria sórdida, apetecia regressar ao humor negro de Mark Twain para dizer que, se calhar, foi pena que Noé e os seus acompanhantes não tivessem chegado atrasados à barca que os salvou do dilúvio.
É verdade que não há maior maravilha do que o homem (Antígona), mas a verdade é que o admirável mundo novo não esconde todo o tipo de procedimentos canalhas que ferem as micropaisagens da vida individual e coletiva ou a grande história de nações e impérios.
Essa desmedida e antiquíssima capacidade para o crime, para a liquidação sumária de milhões ou para a edificação de descidas a infernos que os dias banalizam, agudizam perplexidades e conduzem-nos a uma reflexão brutal sobre a natureza humana que engendra com a maior das facilidades monstros apostados em matar o coração da humanidade, como a poesia de Jorge de Sena registou para sempre no poema Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya.*
Há palavras que respiram com lágrimas esses dramas e lembramo-nos logo de Auschwitz e dos Gulags ou de Primo Levi na arrepiante narrativa Se Isto é um Homem, mas a fala aqui é sempre débil e escassa, porque a tragédia é da dimensão do indizível. Mas talvez nada documente tão bem o absurdo da morte programada e essa mórbida propensão da natureza humana para a engrenagem da morte do que os universos ficcionais trabalhados pelo americanano naturalizado francês, Jonathan Littel, em As Benevolentes (a irracionalidade nazi nas tipologias das suas soluções finais), pelo sueco Steve Sem-Sandburg em O Imperador das Mentiras (o gueto de Lodz e a sordidez do quotidiano na luta pela sobrevivência) ou o extraordinário Vida e Destino, de Vassili Grossman (silêncios e indiferenças sobre as deportações no contexto da guerra).
Painéis humanos fundamentais para percebermos as atrocidades do século XX e porventura a raiz da banalidade do mal, que persegue o homem como uma sombra.
Os genocídios são hoje mais subtis, as guerras territorialmente mais longínquas, as “sírias” do nosso descontentamento um alimento guloso de noticiários, mas a lógica do absurdo da morte, a narrativa esquecida das crianças que em cada segundo morrem de fome à escala planetária, a irracionalidade da negação do homem, amputado do direito à felicidade, está aí como sombra pesada dos dias que vivemos.
Os conflitos extravasaram para o quotidiano e o poder (ou os poderes?) na sua imensa máquina de produzir infelicidade na forma perita da chantagem sobre o débil emprego (o desemprego é outra espécie de morte) provoca o medo de existir, que é a expressão maior da anquilose civilizacional que rouba o horizonte à esperança. Se quisermos não ser distraídos, basta olhar e perscrutar o rumor do mundo para percebermos que os monstros se reproduziram, uns pequeninos outros maiores, burocratas do mal todos eles, especialistas da sacanice avulso, e então, às vezes, de facto, apetece-nos regressar à ironia amarga de Mark Twain e dizer que foi pena Noé e a sua trupe não terem chegado atrasados ao bojo da arca salvadora.
Fernando Paulouro Neves
* (SOBRE "OS FUSILAMENTOS DE GOYA" VER O POST DE 11 DE SETEMBRO DE 2010)
* (SOBRE "OS FUSILAMENTOS DE GOYA" VER O POST DE 11 DE SETEMBRO DE 2010)
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