sexta-feira, 17 de setembro de 2010

15-Eça de Queiroz

                                                                                                                           Junho 1871

15-LEITOR de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi erscrito - se tens bom senso ! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quizeres, com páginas irónicas, alegres e justas nasceu no dia em que pudemos descobrir através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo.

      Aproxima-te um pouco de nós, e vê.
      O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidarielidade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo  pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta inderença de cima abaixo ! Todo o viver esperitual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruina económica cresce, cresce, cresce. O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
     Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.
    De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo casebres ignóbeis, sustentandi-se de sardinha e de ervas trabalhan só para o imposto por meio de uma agricultura decadent,. leva uma vida de misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País Apenas a devoção pertubra  o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.

     Não é uma existência, é uma expiação
     E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte: «O País está perdido !» Ninguém se ilude, diz-se nos concelhos de ministros e nas estalagens. E que se faz ? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de norte a sul, no Estado, na economia, na moral, o País está desorganizado - e pede-se  conhaque  !
      Assim todas as consciências certificam a podridão !

      Nós não quizemos ser cúmplices na indeferença universal. E aqui começamos sem azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderámos chamar  - o progresso da decadência. Deveríamos fazê-lo com a indignação amarga dos panftetários ? Com a serenidade experimental de críticos ? Com a jovialidade fina de humoristas ?
      Não é verdade, leitor de bom senso, que neste momento histórico só há lugar para o humorísmo ? Esta decadência tornou-se um  hábito, quase um bem estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministérios, eclesiásticos, políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção. O áspero Veillot não bastaria; Proudhon ou Vacherot seriam insuficientes. Contra este mundo é necessário ressuscitar as gargalhadas históricas do tempo de Manuel Mendes Enxúndia. E mais uma vez se põe a galhofa ao serviço da justiça !

           Aqui estamos pois diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, doutrinário e grave !
Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia cheia de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.
         Não sabemos, talvez, onde se deve ir; sabemos, decerto onde se não deve estar.
         Catão, com pompeio e com César à vista, sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Temos esta meia\ciência de Catão.
            Donde vimos ? Para onde vamos ? - Podemos apenas responder: Vimos donde vós estais, vamos para onde vós não estiverdes.




Pois é, Eça. Escreveste este texto no século XIX. Estamos no século XXI e devo dizer-te que o povo português continua a ser o burro de sempre. Não sei mesmo se algum dia passará de cavalgadura.






   

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