terça-feira, 28 de setembro de 2010

25 da Fonseca

                   RUAS DA CIDADE

25-Na  noite calada e quieta como um grande segredo,
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.
Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
o frio, e os prédios fechados,
e as ruas mortas como paisagens de cemitérios.
E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
como pálpebras que se vão fechar.
E o torpor saindo de todas as coisas
e pairando no ar, como um desmaio iminente...
Só eu tenho ainda passos para andar
e um não sei que de ternura
para todos que estão, para lá das paredes,
adormecidos e descuidados
à morte que espreita escondida no mistério da noite...

Em que casa e andar estará  dormindo
aquela de quem não sei o nome nem a vida,
mas decorei a cor dos cabelos e a melodia do corpo,
quando nos cruzámos esta manhã?
Nesse momento,
ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra
das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam,
ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro:
 - Hoje é um dia de glória!
Mas tão estranho me pareceu
aquele milagre entre dois desconhecidos,
que nem voltei a cabeça para trás...
Agora, este desâmino sem nome
de quem traiu um dia inteiro de vida
e teima ir pela noite dentro
à espera nem sabe de quê...

De tantas horas iguais estou farto !

Mas ao fim e sempre a mesma esperança:
«um dia virá...»
E eu tenho a vida desarrumada
como se fosse um milionário bêbado,
ergo-me e saio para a rua deslumbrado
e ressucistado, todos os dias, ao amanhecer.
E vai a coisa tão certa como uma religião,
quando pressinto que me olham de todas as caras
como se espiassem um louco...
Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas ?

E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
Ah, um dia, quando a morte chegar,
hei-de erguer para ela os meus olhos molhados,
e hei-de contar-lhe a indiferença do mundo
e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
 - assim como um menino fazendo queixas a sua mãe.

            Baudelaire

Devemos andar sempre bêbados.
Tudo se resume nisto: é a única
solução. Para não sentiress o
tremendo fardo do Tempo que te
despedaça os ombros e te verga
para a terra, deves embriagar-te
sem cessar. Mas com que? Com
vinho, com poesia ou com virtude,
a teu gosto. Mas embriaga-te. E se
alguma vez, nos degraus de um
palácio, sobre as verdes ervas duma
vala, na solidão morna do teu
quarto, tu acordares com a
embriaguês já atenuada ou
desaparecida, pergunta ao vento, à
onda, à estrela, à ave, ao relógio, a
tudo o que canta, a tudo o que
fala, pergunta-lhes que horas são:
 - São horas de te embriagares! Para
não seres como os escravos
martirizados do Tempo, embriaga-
te, embriaga-te sem cessar! Com
vinho, com poesia, ou com virtude,
a teu gosto.»
in O Spleen de Paris
Charles Baudelaire

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