terça-feira, 5 de outubro de 2010

29-GUERRA JUNQUEIRO

             29-        O MELRO

            O melro, eu conheço-o:
Era negro, vibrante, luzidío,
           Madrugador, jovial;
           Logo de manhã cedo
Começava a soltar, d´entre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
          Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias
          O melro, d´entre a horta,
          Dizia-lhe «bom dia"»
          E o velho padre-cura
Não gostava daquelas cortesias.


O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
          Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
         Livre de reumatismos.
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcísmos
        Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
       Até que ultimamente
       O velho disse um dia:


«Nada, já não tem jeito! este ladrão
      Dá cabo dos trigais!
      Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais ?!»


       E o melro no entretanto,
       Honesto como um santo,
       Mal vinha no oriente
       A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto o rude proletário
       O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.


Que grande tolo o padre confessor!


        Foi para a eira o trigo;
        E, armando uns espantalhos,
        Disse o abade consigo:
«Acabaram-se as penas e os trabalhos.»
Mas logo de manhã, maldito espanto!
        O abade, inda na cama,
Ouviu do melro o costumado canto,
        Ficou ardendo em chama;
        Pega na caçadeira,
       Levanta-se dum salto,
E vê o melro a assobiar na eira,
Em cima do seu velho chapéu alto!

       Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava enfermo,
        Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia..
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
         Que o bom do padre-cura
         Perdera ...o apetite!



                       *
                *            *


Andando no quintal  um certo dia
Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!
        Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros escondidos
       Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

«A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira:
        Era o pão, e era o milho;
        Tranmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que page o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!»


E engaiolando os pobres passaritos,
         Soltava exclamações:
         «É uma praga. Malditos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões!
Raios os partam! andai lá que enfim...»

E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim,
        Fungando uma pitada.

                        *
               *                *


Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
         Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
        A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticísmo heróico e salutar.
As árvores, de luz linda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
         Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
        Os rebanhos e as flores,
        As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade,
        Como uma nódoa escura.
E introduzindo a chave no portal
       Murmurou entre dentes:

       «Tal e qual ...tal e qual! ...
Guisados com arroz são excelentes.»

                       *
                *          *


Nasceu a lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam diálogos gigantes
        Pela amplidão etéria.
São precisos silêncios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir estas falas silenciosas


         Dos mundos vegetais
As orvalhadas, frescas espessuras
Pressentiam-se quase a germinar
Desmaiavam-se as cândidas verduras
Nos magnetismos brancos do luar.
..................................................
.................................................

                       *
              *                *

E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrozito acetinado e brando.
       Chegou lá, e viu tudo,
Partiu como uma frecha; e louco e mudo
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.

«Quem vos meteu aqui ?!» O mais velhito
Todo tremente, murmurou então:

«Foi aquele homem negro. -- Quando veio
Chamei, chamei ... Andavas tu  na horta ...
Ai que susto, que susto! Ele é tão feio! ...
Tive-lhe tanto medo! ...Abre esta porta,
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
           Num bonito lugar ...
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
           Para voar, voar!»

          E o melro alucinado
          Clamou:

                                  «Senhor! Senhor!
É porventura crime ou é pecado
          Que eu tenha muito amor
          A estes inocentes ?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
          Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, qantos carinhos.
          Quanta noite perdida
          Nem eu sei ...
          E tudo, tudo em vão!
          Filhos da minha vida!
          Filhos do coração! ...
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o céu para voardes,
E prendem-vos assim desta maneira! ...
         Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano,
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa ...
         Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
         De mais ninguém! ...Que atroz!
         E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar ...
Remorso eterno! eterno pesadelo! ...

...................................................

Falta-me a luz e o ar! ... Oh, quem me dera
           Ser abutre ou ser fera
Para partir o cárcere maldito! ...
E como a noite é límpida e formosa!
          Nem um ai, nem um grito ...
Que noite triste! ó noite silenciosa! ...»

                          *
                 *                *

E a natureza fresca, omnipotente,
           Sorrria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis
         Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
         Cantavam rouxinóis

         Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôbregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas.
A Lua triste, a Lua merencória,
          Desdémona marmória,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
         Branca como a harmonia
         Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons e as flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
         O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno
Bem como  outrora a mãe do Nazareno
        Na noite do calvário! ...

Segundo o seu costume habitual,
       Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a bíblia e sobraçando a enxada.
        Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
       Tratava da hortaliça
E rezava a Deus Padre Omnipotente
       Vários trechos latinos,
Salvando desta forma juntamente
As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já longe  ia bradando:

                                   «Olé!
          Dormiram bem ? ... Estimo ...
          Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do diabo,
Julgavam que isto era só dar cabo
         Da horta e do pomar,
E bico alegre e estômago contente,
E o camelo do cura que se aguente,
Que engrole o seu latim e vá bugiar! ...
Grandes larápios! Era o que faltava
        Vocês irem ao milho,
        E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Têm bico, é certo, mas não tem tonsura ...
E nas manhas um melro nunca chega
Às manhas naturais dum padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé! ... Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço! ...
        E então a Fortunata
Que tem um dedo e um jeito para isso! ...
Hei-de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim,
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda que quase em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
        Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Com ele é melro e sabe assobiar! ...»
Mas nisto o padre-cura titubeante,
        Quase desfalecendo,
Atónito de horror, parou diante
        Deste drama estupendo:


O melro, ao ver aproximar o abade,
        Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
       D cárcere, Torcia,
Para partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
        Com a fúria dum leão.
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
       E alucinado, exangue,
       Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado  e louco,
       Trasendo dentro em pouco
Preso no bico um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno
Disse:
         «Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa, mas a alma voa ...
Ó filhos, voemos pelo azul! ...Comei!»



E mais sublime do que Cristo quando
Morreu na cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, traspassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade uma pungente
Gargalhada de lágrimas, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente,
Num carcavão com silveirais em flor.


E o velho abade, lívido d´espanto,
         Exclamou afinal:
«Tudo que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou d´almas o universo todo.
Tudo o que vive ri e canta e chora...
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificando com a mesma aurora.
Ò mistério sagrado da existência,
         Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Só hoje sei que em toda a criatura
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou uma pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura! ...
...................................................
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava....»



E quedou silencioso. O velho mundo,
Das suas crenças antigas, num momento
Viu-o sumir exausto, moribundo,
         Nos abismos sem fundo
Do tenebroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou ....A Igreja, a Crença
Rude montanha, pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra imensa
Dos setenta séculos d`altura;
O Himalaia de dogmas triunfantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos profetas Deus falava dantes
Entre raios e nuvens trovejantes
Lá dos confins sidérios do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
         Numa ruina espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
Duma avezinha trémula, a expirar!...
........................................................
........................................................
E, arremessando a bíblia, o velho abade
Murmurou:
        «Há mais fé e há mais verdade,
         Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa bíblia antiga ...Ò Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu!...»


                                 ________________________
              
                                                                NOTA

O facto em que baseia este poemeto, conquanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro.
    Os melros e algumas outras aves, como os pintassilgos e ou rouxinóis, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-nos. Muitas vezes (sarcasmo trágico, crueldade sublime!), deixando-os vivos arrancam-lhes a língua!
        Ora nem todos os melros, pintassilgos ou rouxinóis assassinam os filhos, quando lhos prendem. Só o fazem os mais extraordinários, os mais heróicos. O que nos demonstra que a acção é livre e responsável, e não um simples produto duma fatalidade orgânica.
       É pena que Michelet ignorasse esse facto. Que páginas divinas que ele não teria escrito! L`Oiseau ficou
incompleto.

Sem comentários:

Enviar um comentário