domingo, 23 de janeiro de 2011

1-Cesário Verde*

     1-O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL
                          
                            I                         
                                                                              A Guerra Junqueiro

                            Ave-Marias


   Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


   O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, pertubra;
E os edifícios, com as chaminés e a turba,
Toldam-me duma cor monótoma e londrina.


    Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão, felizes!
Ocorrem-me exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim,Sampetersburgo, o mundo!


    Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.


  Voltam os calafates, aos magotes
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.


   E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!


   E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de loiças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.


   Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas:
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!


    Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso o rio; apressam-se as obreiras;
E um cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

     Vêm sacudindo as ancas opulentas!
seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas à cabeça, embalam as canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.



Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro onde miam gatas,
E o peixo podre gera focos de infecção!



                                        II



               NOITE FECHADA



   Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de «dom»!



    E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que abisma.



    A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos;
Alastram em lenços os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.



   Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.



   Na parte que abateu no terramoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as ingredientes subidas.a
E os sinos dum tanger monástico e devoto.



   Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas  pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!



   E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.



     Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.



    Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.



   E mais: as costureiras, as floristas,
Descem dos masagins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.



E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados;
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.



                              III



                   AO GÁS



    E saio . A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus     



     Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores,ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.



     As burguesinhas do catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.



    Num cuteleiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente
Um cheiro salutar e honesto o pão no forno.



    E eu medito um livro que exacerve,
Quizera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.



    Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos
E a vossa palidez romântica e lunar!



    Que grande cobra, a lúbrica pessoa
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.



    E aquela velha de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a  duas tintas. Perto
Escarvam, à vitória, os seus meclemburgueses.



    Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.



    Mas tudo cansa!  Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cautoleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes



    «Dó da miséria! ...  Compaixão de mim! ...»
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homemzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!



                             IV



           HORAS MORTAS



    O tecto fundo de oxigénio, de ar
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.



    Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.



     E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longinqua flauta.



   Se eu não morresse, nunca!  E eternamente
Buscasse e conseguido a perfeição das coisas!
Esqueceço-me a prever castissimas esposas
Que aninham em mansões de vidro transparente!



   Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas  mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.



    Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!



   Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas! ...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir estrangulados.



    E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.



    Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.



    E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas.



    E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes;
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!



  

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