domingo, 20 de dezembro de 2015

1717 - «SABEDORIA» JOÃO MAIA

1717

SABEDORIA

Aprende  a estar só, e a dizer
Adeus às coisas que se afastam.
Deixa-as ir, supérfluas...Recolhe-te
À pobresa das coisas que te bastam.

Não te apegues à névoa dispensável
Nem ao cômodo torpor do que é dado.
Mas canta, como um rio que não sabe
Se canta para si  ou é escutado...

Estende à beira-nada o teu poema,
Vai cantando sòzinho o que é verdade,
E deixa-te invadir  pela  bondade 
--  A sabedoria íntima e suprema.
JOÃO MAIA

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

1716 - «UM MORTO DEU À COSTA» PEDRO DA SILVEIRA

1716

UM MORTO DEU À COSTA

Tão sereno o rosto dele! e tão belos,
serenamente abertos, os seus olhos azúis!
--  Não lhes tocaram os peixes, não quizeram
violar-lhe (quem sabe!) aquela serenidade.

Nada lhe dizia o nome, a pátria, o navio
que foi a casa dele de porto em porto.
--  Seria um santo?  acaso El-Rei Dom Sebastião?
-- Nunca se soube quem  era Capitão Morto.

A sortilha no dedo: seu sinal de casado.
E um canivete e um rosário no bolso da farda.
Mas nada que dissesse, de escrito, o seu nome!
--  O Capitão Morto que botaram ao mar...

Um padre-nosso, por alma do santo 
Capitão Morto arrojado p`lo mar...

PEDRO DA SILVEIRA

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

1715 -- «PELAS RUAS DESERTAS» VASCO MIRANDA

1715
       
PELAS RUAS DESERTAS

Pelas ruas desertas que o silêncio amortalhou em treva
Escorre líquido e viscoso um som que vem detrás das
                                                                              [portas
E um cheiro  a maresia humana  -- é podridão de
                                                                 [loucos! --
Agarra-se-me à pele com a força das raízes.
Anda qualquer coisa no ar como um brejo perdido
E no som que vem dos portais à mistura com a conversa
                                              [das folhas sonânbulas
Um apelo surdo de alvorada aguarda a sua hora.
                                        

                                             (Allfa e Ómega)

VASCO MIRANDA

sábado, 12 de dezembro de 2015

1724 - «CONTENTE NUNCA ESTOU» REINALDO FERREIRA

1714

«CONTENTE NUNCA ESTOU»

Contente nunca estou; feliz não sei
Se existe alguém ou neste mundo ou noutro mundo.
Vou para o Nada,  sou do Nada oriundo,
E entre dois Nadas  desventura é Lei

Da cobarde esperança emancipei
A previsão do meu destino imundo.
Sou consciente do mal em que me afundo,
E consciente do mal continuarei.

Nem revolta me fica, apenas pressa
De me tornar por fim parada peça
No cósmico rolar nefasto e louco.

Depois quero dormir um sono enorme...
Que para uma aflição que nunca dorme,
A Morte, temo bem que seja pouco.

REINALDO  FERREIRA






sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

1713 - «A FERNANDO PESSOA«

1713

           A FERNANDO PESSOA
                   (ELE MESMO)

Cada verso é uma esfinge ter falado.
Mas quanto mais explícito  ela o diz,
Mais tudo permanece inexplicado
E menos de apreende  o que ela quis.


Erra um sussurro, tão etério e alado
Que nem mesmo silêncio  o contradiz.
E o ouví-lo, ou ávido ou irado
Na busca dum segredo sem raíz,

É como se em pensar -- um descampado --
Passasse fugitiva e intensamente
O Tempo todo inteiro projectado

E a sombra ali marcasse, na corrente
Do nada para o nada, inda passado
E já futuro, na ficção do presente.

REINALDO FERREIRA 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

1712 - »AFOGADO NO RIO LEÇA« EGITO GONÇALVES

1712

AFOGADO NO RIO  LEÇA

Vogavas entre duas águas com o corpo torcido
e a corrente impedita-te, vagarosamente, para a foz.
O coração batia mas já não respiravas;
a morte instalava-se no teu corpo\ molhado.
Devagar montava a máquina dos sonhos...
devagar armava-te as futuras asas.

No mar afundavam-se os símbolos da tarde;
enevelado, sem poesia, asfixiavas,
descendo  o rio em direcção à noite,
descendo o rio em direcção  à liberdade. sentou-se 

As unhas violácias, os cabelos flutuando, 
o sangue estrangulado, a fome liquifeita...
Então, como a um menino, alguém te conduziu para a
                                                          (margem relvada.
A Morte sentou-se a ver os  trabalhos da respiraração
                                                                  [artificial,
depois disse-te «Adeus», acenou-te «Até breve»,
e aproveitou a ambulância que te levava ao hospital
para ir mais depressa à sua vida.

EGITO GONÇALVES



terça-feira, 8 de dezembro de 2015

1711- »SONETO« CARLOS DE OLIVEIRA

1711

                     SONETO

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

                   (Colheita perdida, in Poesias, 2ª.ed. revista)

CARLOS DE OLIVEIRA