quarta-feira, 7 de março de 2012

419-ANTONIO JOSÉ SARAIVA



419-Domingos de Paris

DEFRONTE do jardim de Luxemburgo, num café repleto de estudantes, todo aberto ao sol e às nuvens. Num grupo, uma moça universitária conta as suas impressões de uma viagem a Portugal.
        Um país charmant ! Gente amável e hospitaleira. Todo o mundo fala francês. A cozinha? Deliciosa! E que maravilhosos jardins!
     - Jardins? Pergunto com surpresa.  Onde viu você os jardins?
     - O jardim botânico de Coimbra é extraordinário.
Concordo, mas pretendo saber, para além das amabilidades, como é que esta moça, que tem uma grande finura, viu objectivamente, realmente, a gente da minha terra. Ela hesita com embaraço. Como falar a estes portuguses, que são a gentileza em pessoa, que a rodeiam e que a admiram?
     - Bom ...então aí vai. Os portugueses são amáveis, e sente-se que isso, lhes sai do coração. Nos primeiros dias ficamos encantados. Depois ...
     - Depois?
     - O que começa a admirar-nos ao cabo de alguns dias, em Portugal, é um estranho comportamento de gente resignada, ausente, que parece não desejar coisa nenhuma, não procurar nada, não ir para lado nenhum. Com o passar do tempo isto torna-se impressionante, e acaba por exasperar. Ça nous agace!
    Cá estamos! Penso eu. É sempre a mesma história quando falo com franceses a respeito do meu país.
    Voçê faz-me pensar num jovem professor francês que me deu como imagem típica de Portugal um velho que viu em Alfama, olhando da janela o cair da chuva, com olhos parados de quem está longe de tudo. Mas esse seu compatrício ensinava literatura e provavelmente estava a pensar no Bernardim Ribeiro ou no António Nobre. Não se trataria afinal de um cliché literário?
     Não.  É assim mesmo. As pessoas em Portugal parecem alheias. Os olhos não veêm. O tempo não passa. Andam na rua como se não tivessem destino nenhum. Não se apressam para nada.Parece que não têm projecto nem aspiração.
    Quem na minha terra defaz, minha boca amarga. Mas é preciso reagir  a este impulso emocional. E na continuação da conversa procuro explicar. Um país com 50% de população agrária, e em que as estruturas agrárias não mudam há séculos. Um país de família patriarcal, em que os filhos e as filhas passam metade da vida sob a tutela paterna, e acabam por ficar  espiritualmente menores que o resto dos seus dias. Um país de criadas, de mamãs, de tias que apaparicam os meninos, de pais severos que que governam de alto a mimosa capoeira familiar. Um país de miséria mansa, um país de resignação aos caprichos do sol e da chuva, um país de «respeito». Um país em que existe a carinhosa palavra «fominha», designando uma personagem bem conhecida, que se senta à mesa dos campónios e é recebida quase como uma visita de Deus Nosso Senhor.
   Tudo isto eu explico à minha interlocutora que se esforça por compreender, num grande esforço de imaginação, quase comovente. Ou pensará ela, de si para consigo, que tudo isto são fantasias próprias de uma imaginação meridional? E concluo propurando convencê-la de que este carácter exótico de Portugal vai acabar, e ela vai ouvir falar dos Portuguses como gente capaz.
            Passarão os tempos em que Pessoa dizia:

                               Nem Rei, nem Lei nem paz, nem guerra
                               Define com perfil e ser
                               Este fulgor da terra
                               Que é Portugal a entristecer
                               Brilho sem luz e sem arder
                               Como o que o fogo fátuo encerra.
                               Ninguém sabe que coisa quer.
                               Ninguém conhece que alma tem,
                               Nem o que é mal, nem o que é bem
                               (Que ânsia distante perto chora?),
                              Tudo é incerto e derradeiro
                              Tudo é disperso. Nada é inteiro.
                               Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
                 

Este artigo originou a raiva do regime e de sectores da extrema-direita. António José Saraia e António Paulouro foram atacados em pasquins fascistas e António José Saraiva proibido de continuar as suas crónicas de Paris.

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