419-Domingos de Paris
DEFRONTE do jardim de Luxemburgo, num café repleto de estudantes,
todo aberto ao sol e às nuvens. Num grupo, uma moça universitária conta as suas
impressões de uma viagem a Portugal.
Um país charmant !
Gente amável e hospitaleira. Todo o mundo fala francês. A cozinha? Deliciosa! E
que maravilhosos jardins!
- Jardins? Pergunto com surpresa.
Onde viu você os jardins?
- O jardim botânico de Coimbra é
extraordinário.
Concordo, mas pretendo saber, para além das amabilidades, como é
que esta moça, que tem uma grande finura, viu objectivamente, realmente, a
gente da minha terra. Ela hesita com embaraço. Como falar a estes portuguses,
que são a gentileza em pessoa, que a rodeiam e que a admiram?
- Bom ...então aí vai. Os portugueses são
amáveis, e sente-se que isso, lhes sai do coração. Nos primeiros dias ficamos
encantados. Depois ...
- Depois?
- O que começa a admirar-nos ao cabo de
alguns dias, em Portugal, é um estranho comportamento de gente resignada,
ausente, que parece não desejar coisa nenhuma, não procurar nada, não ir para
lado nenhum. Com o passar do tempo isto torna-se impressionante, e acaba por
exasperar. Ça nous agace!
Cá estamos! Penso eu. É sempre a mesma história
quando falo com franceses a respeito do meu país.
Voçê faz-me pensar num jovem professor francês
que me deu como imagem típica de Portugal um velho que viu em Alfama, olhando
da janela o cair da chuva, com olhos parados de quem está longe de tudo. Mas
esse seu compatrício ensinava literatura e provavelmente estava a pensar no
Bernardim Ribeiro ou no António Nobre. Não se trataria afinal de um cliché
literário?
Não. É assim mesmo. As
pessoas em Portugal parecem alheias. Os olhos não veêm. O tempo não passa.
Andam na rua como se não tivessem destino nenhum. Não se apressam para
nada.Parece que não têm projecto nem aspiração.
Quem na minha terra defaz, minha boca amarga.
Mas é preciso reagir a este impulso emocional. E na continuação da
conversa procuro explicar. Um país com 50% de população agrária, e em que as
estruturas agrárias não mudam há séculos. Um país de família patriarcal, em que
os filhos e as filhas passam metade da vida sob a tutela paterna, e acabam por
ficar espiritualmente menores que o resto dos seus dias. Um país de
criadas, de mamãs, de tias que apaparicam os meninos, de pais severos que que
governam de alto a mimosa capoeira familiar. Um país de miséria mansa, um país
de resignação aos caprichos do sol e da chuva, um país de «respeito». Um país
em que existe a carinhosa palavra «fominha», designando uma personagem bem
conhecida, que se senta à mesa dos campónios e é recebida quase como uma visita
de Deus Nosso Senhor.
Tudo isto eu explico à minha interlocutora que se
esforça por compreender, num grande esforço de imaginação, quase comovente. Ou
pensará ela, de si para consigo, que tudo isto são fantasias próprias de uma
imaginação meridional? E concluo propurando convencê-la de que este carácter
exótico de Portugal vai acabar, e ela vai ouvir falar dos Portuguses como gente
capaz.
Passarão os tempos em que Pessoa dizia:
Nem Rei, nem Lei nem paz, nem guerra
Define com perfil e ser
Este
fulgor da terra
Que é Portugal a entristecer
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal, nem o que é bem
(Que
ânsia distante perto chora?),
Tudo
é incerto e derradeiro
Tudo
é disperso. Nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
Este artigo originou a raiva do regime e de sectores da
extrema-direita. António José Saraia e António Paulouro foram atacados em pasquins
fascistas e António José Saraiva proibido de continuar as suas crónicas de
Paris.
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