terça-feira, 2 de setembro de 2014

1476 - «PÁTRIA, LUGAR DE EXÍLIO« - DANIEL FILIPE

1476

PÁTRIA, LUGAR DE EXÍLIO

Neste ano de 1962
não   como Nazim Hikmet   no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quizer
e    no entanto      prisioneiro
neste ano de1962
exactamente 
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde

Neste ano de 1962
encostado a uma esquina da estação do Rossio
esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris não distante
minha África inútil
aqui mesmo
aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-lingua e literatura

Aqui mesmo     a não sei quantos graus de latitude
e de enjoo crescente 
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado

com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos
Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higiènicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido  de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto do aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e cotemporizando com tudo 
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo       apesar de tudo inquieto
apesar de tudo farto
eu
neste ano de 1962
exactamente
não ontem   mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial 
exilado na pátria.
                             (Pátria, Lugar de Exílio)


DANIEL FILIPE

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