terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

1610 - «HUMILHAÇÕES» - CESÁRIO VERDE

1610

HUMILHAÇÕES

                      De todo o coração  --  a Silva Pinto

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job,
Aceito os seus desdéns, seus ódios, idrolatro-os;
E espero-a nos salões  dos principais teatros,
           Todas as noites, ignorado e só.

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesás e os brilhos,
            Eu analiso as peças no cartaz.

Na representção dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penunbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
            Saltou soberba o estribo do coupé.

Como ela marcha! Lembra um magnetizador,
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
            Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim!  Porque não podia abandoná-la em paz
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
Ds vê-la aproximar, sentado na plateia,
           De tê-la num binóculo mordaz!

Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
-- Quem compra algum bilhete ou vende uma senha?
          E ouviam-se cá fora as ovações.

Que desvanecimento!  A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as arpas e as babecas,
         Nos grandes espectácolo do Som.

Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via subir, direita, a larga escadaria.
E entrar no camarote. Antes estimaria
          Que o chão se abrisse para a abater

Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo, irei-me; e eu, que detesto a farda~,
          Cresci com raiva contra o militar.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja
E disse-me, piscando os olhos de coruja;
--- Meu bom senhor! Dá-me um cigarro, Dá? ...


CESÁRIO VERDE

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