sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

011-O CASO MENTAL PORTUGUÊS

011-Apetece-me começar este post, o último post de 2010, com o Caso  mental português, de Fernando Pessoa que, segundo se diz por aí, o ensino em Portugal e a mentalidade deste povo, continua cada vez mais na mesma:


                                              O caso mental português 
                                                   
                                             1932  


   Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria «provincianismo». Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa.
    Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de um país, e portanto de Portugal; direi depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
    Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental - a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
    O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás, que sejam sempre erradas. Por natureza, forma o povo um bloco, onde não há mentalmente indivíduos; e o pensamento é individual.
      O que caracteriza a segunda camada que não é a burguesia, é a capacidade de reflectir, porém sem ideias próprias; de criticar, porém com ideias de outrem. Na classe média mental, o indivíduo, que mentalmente existe, sabe já escolher - por ideias e não por  instinto - entre duas ideias ou doutrinas que lhe apresentem; não sabe, porém, contrapor a ambas uma terceira, que seja própria. Quando aqui e ali, neste ou naquele, fica uma opinião média entre duas doutrinas, isso não representa um cuidado crítico, mas uma hesitação mental.
     O que caracteriza a terceira camada, o escol, é, como é de ver por contraste com as outras duas, a capacidade de criticar com ideias próprias. Importa, porém, notar que essas ideias próprias podem não ser fundamentais. O indivíduo do escol pode, por exemplo, aceitar inteiramente uma doutrina alheia; aceita-a, porém, criticamente, e, quando a defende, defende-a com argumentos seus - os que o levaram a aceitá-la - e não, como fará o mental da classe média, com os argumentos originais dos criadores ou expositores dessas doutrinas.
     Esta divisão em camadas mentais, embora coincida em parte com a divisão em camadas sociais - económicas ou outras - não se ajusta exactamente a essa. Muita gente das aristocracias de história e de dinheiro pertence mentalmente ao povo. Bastantes operários, sobretudo das cidades, pertencem à classe média mental. Um homem de génio ou de talento, ainda que nascido de camponeses, pertence de nascença ao escol.
     Quando, portanto, digo que a palavra «provincianismo» define, sem outra que a condicione, o estado mental presente do povo português, digo essa palavra «provincianismo», que mais adiante definirei, define a mentalidade do povo português em todas as três camadas que a compõem. Como, porém, a primeira e a segunda camadas mentais não podem por natureza ser superiores ao escol, basta que eu prove o provincianismo do nosso escol presente, para que fique provado o provincianismo mental da generalidade da nação.
       Os homens, desde que entre eles se levantou a ilusão ou realidade chamada civilização, passaram a viver, em relação a ela, de uma de três maneiras, que definirei por símbolos, dizendo que vivem ou como os campónios, ou como provincianos, ou como citadinos. Não se esqueça que trato de estados mentais e não geográficos, e que portanto o campónio ou o provinciano pode ter vivido sempre em cidade, e o citadino sempre no que é natural desterro.
     Ora a civilização consiste simplesmente na substituição do artifial ao natural no uso e correnteza da vida. Tudo quanto constitui a civilização, por mais natural que hoje nos pareça, são artifícios: o tranporte sobre rodas, o discurso disposto em verso escrito, renegam a naturalidade original dos pés e da prosa falada.
     A artificialidade, porém, é de dois tipos. Há aquela, acumulada através das eras, e que, tendo-a já encontrado quando nascemos, achamos natural; e há aquela que todos os dias se vai acrescentando à primeira. A esta segunda é uso chamar «progresso» e dizer que é «moderno» o que vem dela. Ora o campónio, o provinciano e o citadino diferençam-se entre si pelas suas diferentes reacções a esta segunda artificialidade.
     O que chamei campónio sente violentamente a artificialidade do progresso; por isso se sente mal nele e com ele, e intimamente o detesta. Até das conveniências e das comodidades do progresso se serve constrangido, a ponto de, por vezes, e em desproveito próprio, se esquivar a servir-se delas. É o homem dos «bons tempos», entendendo-se por isso os da sua mocidade, se é já idoso, ou os da mocidade dos bisavós, se é simplesmente párvuo.
      No polo oposto, o citadino não sente a artificialidade do progresso. Para ele é como se fosse natural. Serve-se do que é dele, portanto, sem constragimento nem apreço. Por isso o não ama nem desama: é-lhe indiferente. Viveu sempre (física ou mentalmente) em grandes cidades; viu nascer, mudar e passar  (real ou idealmente) as modas e a novidade das invenções; são pois para ele aspectos correntes, e por isso incolores, de uma coisa continuamente já sabida, como as pessoas com quem convivemos, ainda que de dia para dia sejam realmente diversas, são todavia para nós idealmente sempre as mesmas.
      Situado mentalmente entre os dois, o provinciano sente, sim, a artificialidade do progresso, mas por isso mesmo o ama. Para o seu espírito desperto, mas incompletamente desperto, o artificial novo, que é o progresso, é atraente como novidade, mas ainda sentido como artificial. E, porque é sentido simultaneamente como artificial é sentido como atraente, e é por artificial que é amado. O amor às grandes cidades, às novas modas, às «últimas novidades», é o característico distintivo do provinciano.
      Se daqui se concluir que a grande maioria da humanidade civilizada é composta de provincianos, ter-se-á concluído bem, porque assim é. Nas nações deveras civilizadas, o escol escapa, porém, em grande parte, e por sua mesma natureza, ao provincianismo. A tragédia mental de Portugal presente é que, como verems, o nosso escol é estruturalmente provinciano.
     Não se estabeleça, pois seria erro, anologia, por justaposição, entre as duas classificações, que se fizeram, de camadas e tipos mentais. A primeira, de sociologia estática, define estados mentais em si mesmos; a segunda, de sociologia dinâmica, define estados de adaptação mental ao ambiente. Há gente do povo mental que é citadina em suas relações com a civilização. Há gente do escol, e do melhor escol - homens de génio e de talento -, que é campónio nessas relações.
    Pelas características indicadas como as do provinciano, imediatamente se verifica que a mentalidade dele tem uma semelhança perfeita com a da criança. A reacção do provinciano, às suas artificialidades, que são as novidades sociais é igual à da criança às suas artificialidades, que são os brinquedos. Ambos as amam espontaneamente, e porque são artificiais.
     Ora o que distingue a mentalidade da criança é, na inteligência, o espírito de imitação; na emoção, a vivacidade pobre; na vontade, a impulsibilidade incoordenada. São estes, portanto, os característicos que iremos achar no provinciano; fruto, na criança, da falta de desenvolmento civilizacional, e assim ambos efeitos da mesma causa - a falta de desenvolvimento. A criança é, como o provinciano, um espírito desperto, mas incompletamente desperto.
     São estes característicos que distinguirão o provinciano do campónio e do citadino. No campónio, semelhante ao animal, a imitação existe, mas à superfície, e não, como na criança e no provinciano, vinda do fundo da alma; a emoção é pobre, porém não é vivaz, pois é concentrada e não dispersa; a vontade, se de facto é impulsiva, tem contudo a coordenação  fechada  do instinto, que substitui na prática, salvo em matéria complexa, a coordenação aberta da razão. No citadino, semelhante ao homem adulto, não há imitação, mas aproveitamento dos exemplos alheios, e a isso se chama, quando prático, experiência, quando teórico, cultura; a emoção ainda quando não seja vivaz, é contudo rica, porque complexa por ser complexo quem a terá; a vontade, filha da intelgência e não do impulso, é coordenada, tanto que, ainda quando faleça falece coordenadamente, em propósitos frustes mas idealmente sistematizados.
    Percorremos, olhando sem óculos de qualquer grau ou cor, a paisagem que nos apresentam as produções e improduções do nosso escol. Nelas verificaremos, pormemor a permenor, aqueles característicos que vimos serem distintivos do provincianismo.
   Comecemos por não deixar de ver que o escol se compõe de duas camadas - os homens de inteligência, que formam a sua maioria, e os homens de génio e de talento, que formam a sua minoria, o escol do escol, por assim dizer. Aos primeiros exigimos espírito crítico; aos segundos exigimos originalidade, que é, em certo modo, um espírito crítico involuntário. Façamos pois incidir a análise que propusemos fazer, primeiro sobre o pequeno escol, que são os homens de génio e de talento, depois sobre o grande escol.
   Há, é certo, alguns escritores e artistas que são homens de talento; se algum deles o é de génio, não sabemos, nem para o caso importa. Nesses, evidentemente, não se pode revelar em absoluto o espírito de imitação, pois isso importaria a ausência de originalidade, e esta a ausência de talento. Esses nossos escritores e artistas são, porém, originais uma só vez, que é a inevitável. Depois disso, não evoluem, não crescem; fixado esse primeiro momento, vivem parasitas de si mesmos, plagiando-se indefinidamente. A tal ponto isto é assim, que não há, por exemplo, poeta nosso presente - dos célebres, pelo menos - que não fique completamente lido  quando  incompletamente lido, em que a parte não seja igual ao todo. E se em um ou outro de nota, em certa altura, o que parece ser uma modificação da sua «maneira», a análise revelará que a modificação foi regressiva: o poeta ou perdeu a originalidade e assim ficou diferente pelo processo simples de ficar inferior, ou decidiu começar a imitar outros por a impotência de progredir de dentro, ou resolveu por cansaço, atrelar a carroça do seu estro ao burro de uma doutrina externa, como o catolicismo ou o internacionalismo. Descrevo abstratamente, mas os casos que descrevo são concretos; não preciso de explicar, porque não junto a cada exemplo o nome do indivíduo  que mo fornece.
    O mesmo provincionalismo se nota na esfera da emoção. A pobreza, a monotonia da emoção nos nossos homens de talento literário e artístico, salta ao coração e confrange a inteligência. Emoção viva, sim, como aliás era de esperar, mas sempre a mesma, sempre simples, sempre simples emoção, sem auxílio crítico da inteligência ou da cultura. A ironia emotiva, a subtileza passional , a contradição no sentimento - não as encontrareis em nenhum dos nossos poetas emotivos, e são quase todos emotivos. Escrevem, em matéria do que sentem, como escreveria o pai Adão, se tivesse dado  humanidade, além do mau exemplo já sabido, o, ainda pior, de escrever.
    A demonstração fica completa quando conduzimos a análise à região da vontade. Os nossos escritores e artistas são incapazes de meditar uma obra antes de a fazer, desconhecem o que seja coordenação, pela vontade intelectual, dos elementos fornecidos pela emoção, não sabem o que é a disposição das matérias, ignoram que um poema, por exemplo, não é mais que uma carne de emoção cobrindo um esqueleto de raciocínio. Nunhuma capacidade de atenção  e concentração, nenhuma potência de esforço meditado, nenhuma faculdade de inibição. Escrevem ou artistam ao sabor da chamada «inspiração», que não é mais que um impulso complexo do subconsciente que cumpre sempre submeter, por uma aplicação centrípeta da vontade, à transmutação alquímica da consciência. Produzem como Deus é servido, e Deus fica mal servido. Não sei de poeta português de hoje que, construtivamente, seja de confiança para além do soneto.
   Ora, feitos estes reparos analíticos quanto ao estado mental dos nossos homens de talento, é inútil alongar este breve estudo, tratando com igual pormenor a maioria do escol. Se o escol do escol é assim, como não será o não escol do escol? Há, porém, um característico comum a ambos esses elementos da nossa camada mental superior, que aos dois irmana, e, irmanados, define: é a ausência de ideias gerais e, portanto do espírito crítico e filosófico que provém de as ter. O nosso escol político não tem ideias excepto sobre política, e as que tem sobre política são servilmente plagiadas do estrangeiro - aceites, não porque sejam boas, mas porque são francesas ou italianas, ou russas, ou o que quer que seja. O nosso escol literário é ainda pior: nem sobre literatura tem ideias. Seria trágico, à força de deixar de ser cómico, o resultado de uma investigação sobre, por exemplo, as ideias dos nossos poetas célebres. Já não quero que se submetesse qualquer deles ao enxovalho de lhes perguntar o que é a filosofia de Kant ou a teoria da evolução. Bastaria submetê-lo ao enxovalho maior de lhe perguntar o que é ritmo. (1)


(1) In Fama, nº. 1, Lisboa, 30-11-1932

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

012-Dia de Natal

012-Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.


È dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a   
                                                                               [sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.


Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e de banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extingem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.


De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino
                                                                    [Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de
                                                          [pulso antimagnético.)


Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos,
                                                                            [esfuziante.
Todos partecipam nas alegrias dos outros como se fossem
                                                                               [suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam
                                                                 [mais distante.


Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa
                                                                   [dinâmica
cintilam , sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de
                                                                          [cerâmica.


Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bençãos e
                                                                          [favores


A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo senm querer, entra no estabecimento
e compra - louvado seja o Senhor! -  o que nunca tinha
                                                          [pensado comprar.


Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.


Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama
corre à cozinha
mesmo em pijama


Ah !!!!!!!!!!


Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus


Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio por no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.


Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá


Já está!
E fazi-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.


Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de felicidade
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

013-A herança

013-Depois de um governo de «salvação nacional», entre 1983 e1985, chefiado por Mário Soares (e composto pela elite da política portuguesa: Mota Pinto, Hernâni Lopes, Jaime Gama, Álvaro Barreto, Maldonado Gonelha, Francisco Sousa Tavares, Rui Machete, Veiga Simão, entre outros), Cavaco Silva veio, durante 10 anos e duas maiorias absolutas, dar um novo rumo ao país: despesismo do Estado, auto-estradas, rotundas, promoções automáticas na Função Pública, assessores e mais assessores e por aí fora. Não é de admirar, pois, que Cavaco Silva - o pai do estado a que chegámos - «tenha percebido», em 2003, como agora lembra, o estado a que Portugal iria chegar com o rumo que lhe deu em 1985, quando o «ouro» de Bruxelas chegava diariamente aos cofres da Nação. Há, de facto, heranças pesadas. E, nestes dias, a de Cavaco pesa mais do que qualquer outra. Vá, continuem a votar no Cavaco, seus burros !!!

sábado, 4 de dezembro de 2010

014--A fábula do escorpião

014-Dizem por aí que a moeda que usamos, o Euro, está às portas da morte. A extrema-unção já lhe foi ministrada. Uns já anunciaram o seu falecimento. e rejubilam com a demonstração europeia que aí vem; outros, mais sábios, dizem que já tinham avisado, mesmo antes do Euro nascer, que teria vida curta; que isto, assim, sem critérios de convergência rígidos, sem união fiscal  e política, nunca podia chegar a bom porto. Tudo gente de vistas largas. As carpideiras do costume juntam-se em coro a enumerar factos incontestáveis; os «mercados da dívida» incendiaram Atenas ; as chamas já chegaram a Dublin e encaminham-se agora velozmente para Lisboa. Depois, chegarão a Madrid e alastrarão a Roma e a Bruxelas. É já inevitável - dizem. A coveira, a senhora Merkel, só terá de enterrar o corpo. E sobre os escombros desta Europa Social poderá nascer, então, uma Europa neoliberal. Cá para mim, que não entendo de finanças, nem tenho biblioteca, tudo isto se parece com a fábula do escorpião e da rã. Falta saber se os «investidores» e os «mercados da dívida» estão a fazer de escorpião ou de rã.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

015-A coisa está preta

015-A Europa está madura para grandes transformações políticas e sociais, como no tempo da revolução francesa ou da revolução soviética. Agora, as exigências são outras: mais democracia, mais transparência. mais rigor nas contas públicas, melhor distribuição  da riqueza produzida. As velhas soluções protagonizadas pelos partidos comunistas (entre nós pelo PCP e pelo BE) caducaram e, por isso, não mobilizam o descontentamento resultante da profunda crise  em que vivemos. Ninguém produz uma ideia nova, um rumo - partir a loiça toda para construir de novo. A filosofia alemã não produziu, em mais e um século, um outro Marx (ou mesmo um Hegel  ou um Engls), Heidegger não deu uma para a caixa. A senhora Merkel (que não foi bafejada pela filosofia alemã) reúne num só corpo o pior das «duas» Alemanhas. Os socialistas, os sociais-democratas, os liberais ou democratas-cristãos andam todos aos papéis no caixote do lixo: estão à espera que o mundo  volte a ser o que era. Não volta. E se não volta o que está para a frente é algo diferente, ainda indecifrável. Este era o momento da Europa  dar o murro na mesa. Para sobreviver. Para decifrar o futuro. Mas não há pensamento político consistente que sustente o murro. E todos têm medo de partir o pulso, em vez de partir a mesa. Os «mercados financeiros» agradecem a inércia, enquanto por cá há quem acredite que um Passos Coelho ou um Paulo Portas podem resolver a situação. Haja juízo.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

016-AOS MEUS VISITANTES





016-NO FIM DESTA PÁGINA EXISTEM TRÊS BARRAS DE VÍDEO:
      a)    O primeiro vídeo da primeira barra é o poema para   
             Galileu dito pelo autor: António Gedeão
      b)   O primeiro vídeo da segunda barra são as mais belas   
             paisagens
        c)   O primeiro vídeo da terceira barra (direita) é "Lisboa
             Menina e Moça".

Tome nota: quando clicar num vídeo e ele arrancar;  se clicar uma segunda vez no mesmo vídeo ele fica posicionado no
YouTube
Tenho a certeza de que vai gostar!

UMA IMAGEM VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS

ASB, 21 de Novembro 2010

NOTA:  O "Poema para Galileu" foi postado como António Gedeão e foi publicado no dia 7 de Setembro de 2010 podendo portanto ser encontrado no mês de Setembro.

domingo, 14 de novembro de 2010

017-Do mercado do Bolhão ao mercado da dívida

017-Os juros da dívida pública atinjiram, esta manhã, 7,1%, no « mercado da dívida» - palavra que entrou definitivamente no nosso bocabulário. Antes, abasteciamos-nos no mercado da Ribeira e no mercado do Bolhão. Hoje, perdidas as tradições, abastecemo-nos no «mercado da dívida». Mas há . As mudanças dos hábitos de consumo dos portugueses, (deixámos de frequentar os mercados tradicinais para entrarmos na voragem dos centros comerciais, dos stands de automóveis e nas agências de viagens), e a mudança dos meios de pagamento (substituindo as notas do Banco de Portugal que nos eram entregues como remuneração pelos cartões de crédito ilimitado) levaram-nos a percorrer o caminho  até ao «mercado da dívida». Foi o ciclo do crescimento assente no investimento público e no consumo inaugurado pelos governos de Cavaco Silva e pela integração europeia. O Estado, as empresas e as famílias entregaram-se ao ao deboche e não mais pararam de aumentar as despesas. A crédito, obviamente. A produção de riqueza não chegava para tanto esbanjamento. Agora, mesmo os mais optimistas já perceberam  que temos de voltar aos mercados da Ribeira e do Bolhão. Nunca a expressão Vais pagar e com juros foi tão adequada à nossa situação.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

018-E ainda a procissão vai no adro

018-Os dirigentes do País (de qualquer partido) acostumaram-se a empurrar, nas alturas de crise, as responsabilidades por ela para as vítimas dela. É o seu estratagema de impunidade.
      Insidiosamente, os trabalhadores vêem-se, assim, invectivados por não produzirem, os desempregados por não  se haverem modernizado, os jovens sem colocação por se mostrarem impacientes de consumismos, os reformados por adornarem a sustentabilidade da previdência social, os doentes crónicos por serem viciados em gulodices farmacológicas, em saborosos internamentos hospitalares e intervenções cirúrgicas.
      Tornou-se, aliás, hábito aparecerem em público uns senhores de rostos severos a admoestarem-nos por «gastarmos mais do que ganhamos» e «ganharmos mais do que produzimos»; por, nas suas enfáticas palavras «vivermos acima das nossas possibilidades».
      Não se sabe, entretanto, nem ninguém cuida de explicar, o que isso realmente significa. Sabe-se, sim, que vários dos notáveis em causa auferem regalias multi-milionárias apesar (talvez por isso) de serem co-responsáveis pelo desequilíbrio a que chegamos.
      Subir o nível de vida dos portugueses constituíu (é bom não esquecê-lo), o isco utilizado para as populações morderem a Revolução, a democracia, a liberdade, a igualdade, então lançado  nas águas onde, expectantes, barbateávamos. Para o manter abaixo (ou dentro) das nossas míseras possibilidades, já bastava a sovinice do regime anterior.
       O povoléu atirou-se às promessas (paradisíacas) dos novos poderes  como gato a bofe. As nacionalizações que a esquerda mais destemida fez garantiam, por outro lado, que iríamos aboletar-nos, sem suar as estopinhas, com grossas maquias de empresas, fábricas, bancos, herdades, prédios, indústrias e comércios expropriados aos capitalistas fascistas.
      A  CEE ajudou, depois, à festa com fundos rapinados a preceito.
      Num ápice, novas, expeditas classes ascenderam no País preferindo, porém, fazê-lo em direcção a valores materiais do que culturais, o que  gerou um boom de light bastante ilustrativo.
      Ante solo tão fértil, adubado pelo colapso socialista, o liberalismo selvagem (passe o pleonasmo) emergiu, fomentando o consumismo que fomentou a massificação e, esta, a indiferenciação, a desistência, a apatia - em que nos afogamos.
      Colunistas de soalheiro e contabilistas de balcão inundam-nos, entretanto, de cenários, de estatísticas, de sondagens a sustentarem  medidas revigorantes (arrasantes) para a continuação da nossa débil sobrevivência - que a deles encontra-se salvaguardada.
       Temos, como consequência - e ainda procissão vai no adro -, falências e desemprego, miséria e aviltamentos em tsunami.
       O pequeno comércio (sustentáculo dos núcleos populacionais das cidades) a pequena agricultura (idem para os dos campos) caíram inanimados; 80 mil jovens andam à procura de um primeiro emprego, enquanto as famílias vêem 90 por cento dos seus rendimentos endividados; metade da população vive, segundo os critérios da CE (dos nossos são 22 por cento), a nível da pobreza.
        Em número crescente, crianças vão em jejum para as escolas, idosos deixam de tomar medicamentos, multidões dormem ao relento, semi-envergonhados comem de caixotes do lixo. Em muitas casas volta-se, como há 50 anos, a cozinhar em fogareiros de petróleo (o gás inacessibilizou-se), a tomar banho uma vez por semana, a ingerir apenas sopa às refeições, a deitar meias solas em sapatos.
       Fazer baixar o luxo que, dizem, praticamos é, avisam-nos, um imperativo inadiável, sob o risco das classes médias baterem (mais?) no fundo e perder-se o País.
       Irónicos, os mais vividos reduzem o que se ensaia a remake de Neo-Estado Novo, neo-fascismo anular de indomados.
      «Muita gente», avisava Cunha Rego, «sente-se já bem no mal e mal no bem».
       Fernando Dacosta

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

019-FERNANDO PESSOA (Álvaro de Campos)*


                                        019- TABACARIA

                            (O mais belo texto do mundo)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém 
                                                                                [ sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada  constantemente
                                                                                   [por gente
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos
                                                                                  [nos homens.
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de
                                                                                           [nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um combóio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na
                                                                                                                     [ida                                                                                                                                         
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou ?
Ser o que penso ? Mas penso ser tanta coisa !
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode
                                                                                  [haver tantos!
Génio ? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas
                                                                                 [certezas!
Eu, que não tenho nenhuma cereteza, sou mais certo ou menos
                                                                                        [certo?
Não, nem em mim ...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmo sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas --
Sim, verdadeiramente altas nobres e lúcidas --,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente ?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que
                                                                                  [tenha razão
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do
                                                                                    [que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu,
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que abrissem a porta ao pé de uma
                                                                     [parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus  num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me  a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver de vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da
                                                                                      [cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar  e a Via Láctea e o Indefinido.


(come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com
                                                                                 [que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha
                                                                                  [de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem
                                                                                      [lágrimas,
Nobre ao mesmo no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê de moderno - não concebo bem o quê - ,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que
                                                                                  [inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo  e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses
                                                                               [cresses
(porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
                                                                   [nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
                                                          [cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.


Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
                                                             [perdi-me
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
                                                                                      [tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou como um capacho que os cigamos roubaram e não valia
                                                                                   [nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como
                                                                                   [gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo
                                                  [de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra
Sempre uma coisa inútel como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de
                                                                 [mistério de superfície
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem
                                                                                        [outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E goso, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
                                                             [estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira
                                                                         [das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstrui-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da
                                                                    [Tabacaria sorriu.
      
                                                                               15-1-1928

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

020-CITAÇÕES

020-"Sede felizes; os amigos desaparecem quando somos infelizes"
                Eurípedes

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

30-GUERRA JUNQUEIRO - Balanço patriótico

                                         30Balanço patriótico

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda  na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta;
         Um clero português, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cujo Vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades não são mais que a tradução em eclesiástico do furas-vidas que governa o distrito ou do fura-vidas que administra o concelho (1); e, ao pé deste clero indígena, um clero jesuítico, estrageiro ou estrangeirado, exército de sombras, minando, enredando, absorvendo, pelo púlpito, pela escola, pela oficina, pelo asilo, pelo convento e pelo confessecionário - força superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elastecidade inteligente a todos os meios e condições, desde a aldeola  ínfima, onde berra pela boca epiléptica do fradalhão milagreiro, até à rica sociedade elegante da capital , onde o jesuitismo é um dandismo de sacristia, uma beatéria chic, virgem do tom, Jesus de high-life, prédicas untuosas (monólogos ao divino por Coquelins de fralda) e em certos dias, na igreja da moda, a bonita missa encantadora, - luz discreta, flores de luxo, paramentos raros, cadeiras cómodas, latim primoroso, e hóstia glacée, com pistache, da melhor confeitaria de Paris; não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedem, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro;
    Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança pelo primeiro que sai dum ventre, - como da roda da lotaria;
     A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rolhas;
     Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar à monarquia ou meia livra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarísmo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, - de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.
        
          Basta, basta, chega, chega !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!         
 Se continuasse, eram precisas seis páginas para completar este post.
Até parece que o Guerra Junqueiro saíu da tumba e está a viver  entre nós neste nosso século XXI.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

29-GUERRA JUNQUEIRO

             29-        O MELRO

            O melro, eu conheço-o:
Era negro, vibrante, luzidío,
           Madrugador, jovial;
           Logo de manhã cedo
Começava a soltar, d´entre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
          Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias
          O melro, d´entre a horta,
          Dizia-lhe «bom dia"»
          E o velho padre-cura
Não gostava daquelas cortesias.


O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
          Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
         Livre de reumatismos.
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcísmos
        Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
       Até que ultimamente
       O velho disse um dia:


«Nada, já não tem jeito! este ladrão
      Dá cabo dos trigais!
      Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais ?!»


       E o melro no entretanto,
       Honesto como um santo,
       Mal vinha no oriente
       A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto o rude proletário
       O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.


Que grande tolo o padre confessor!


        Foi para a eira o trigo;
        E, armando uns espantalhos,
        Disse o abade consigo:
«Acabaram-se as penas e os trabalhos.»
Mas logo de manhã, maldito espanto!
        O abade, inda na cama,
Ouviu do melro o costumado canto,
        Ficou ardendo em chama;
        Pega na caçadeira,
       Levanta-se dum salto,
E vê o melro a assobiar na eira,
Em cima do seu velho chapéu alto!

       Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava enfermo,
        Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia..
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
         Que o bom do padre-cura
         Perdera ...o apetite!



                       *
                *            *


Andando no quintal  um certo dia
Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!
        Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros escondidos
       Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

«A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira:
        Era o pão, e era o milho;
        Tranmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que page o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!»


E engaiolando os pobres passaritos,
         Soltava exclamações:
         «É uma praga. Malditos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões!
Raios os partam! andai lá que enfim...»

E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim,
        Fungando uma pitada.

                        *
               *                *


Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
         Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
        A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticísmo heróico e salutar.
As árvores, de luz linda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
         Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
        Os rebanhos e as flores,
        As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade,
        Como uma nódoa escura.
E introduzindo a chave no portal
       Murmurou entre dentes:

       «Tal e qual ...tal e qual! ...
Guisados com arroz são excelentes.»

                       *
                *          *


Nasceu a lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam diálogos gigantes
        Pela amplidão etéria.
São precisos silêncios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir estas falas silenciosas

domingo, 3 de outubro de 2010

28-Poetas de ontem e de hoje

28-AIRAS NUNES DE SANTIAGO

Clérigo de Santigo de Compostela, Carolina Michaelis pensa que terá sido jogral na corte de Sancho IV. Homem extremamente culto, é autor da universalmente famosa «bailada das avelaneiras».

Bailemos nós já todas três, ai amigas,
so (1) aquestas avelaneiras froridas
e quem fôr velida, como nós, velidas,
      se amig´amar,
so aquestas avelaneiras froridas
      verrá (2) bailar.

Bailemos nós já todas tres, ai irmanas,
so aquesto ramo d´estas avelanas
e quem for louçana, como nós, louçanas,
      se amig´amar,
so aquesto ramo d´estas avelanas
      verrá bailar.
 
Por Deus, ai amigas, mentr´al (3) non fazemos,
so aquesto ramo frorido bailemos
e quen ben parecer, como nós parecemos,
       se amig´amar,
so aquesto ramo so´l (o) (4) que nós bailemos
       verrá bailar.
____________________

(1)  So: sob
(2) Verrá: virá
(3)  Mentr´al: enquanto outra coisa
(4)  So´l: sob o qual.

      Esta é a famosa «bailia ou bailada das avelaneiras de Airas Nunes de Santiago. Uma jovem enamorada desafia as duas companheiras que com ela se encontram a bailar debaixo das avelaneiras floridas, e acrescenta: «Quem for bela, como nós somos belas, e estiver apaixonada (se amig´amar), deve juntar-se a nós para bailar debaixo destas avelaneiras». Logo, quem estiver de amores, que venha festejar a alegria de amar, bailando (e cantando).

Nota : esta poesia faz parte de uma canção do Zeca Afonso

JOÃO ZORRO

Jogral, supõe-se ter andado pelas cortes de D. Afonso III e D. Dinis. Célebre pelas suas marinhas ou barcarolas.  Vitorino Nemésio considera-o, justamente, «um dos maiores líricos medievais»

CANTIGAS DE AMIGO

En Lixboa, sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar, (1)
     ai mia senhor velida! (2)

En Lixboa, sobre lo ler, (3)
barcas novas mandei fazer,
     ai mia senhor velida!

(B)arcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
   ai minha senhor velida!

(B)arcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
      ai mia senhor velida
________________
(1) Lavrar: fazer.
(2) Velida: formosa
(3) Ler: praia

      Nesta cantiga, o poeta abandona o convencionalismo de pôr o que quer dizer na boca de uma donzela. Seria então, de acordo com a «Arte de Trovar», com que abre o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, uma cantiga de amor, mas é de conservar a designação de «cantiga de amigo», considerado o modo paralelístico que a estrutura.

MANUEL ALEGRE

Salgueiro Maia

Ficaste na pureza inicial
do gesto que liberta e se desprende
havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.

Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem a sua regra
conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra

Por isso ficarás como quem vem
dar outro rosto ao rosto da cidade
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.


GUERRA JUNQUEIRO

FALAM AS ESCOLAS EM RUINAS

A alma da infância é um passarinho;
Gorjeia o ninho e a escola chora :
Na infância cai a noite; e o ninho
Tem sobre as plúmulas d´arminho
             A aurora

A alma da infância é flor de mimosa;
A escola é triste e a flor vermelha:
Na escola paira a c´ruja odiosa,
E sobre o cálice da rosa
             A abelha

Tu fazes, Pátria, as almas cegas,
Prendendo a infância num covil.
Aves não cantam nas adegas;
Se a infância é flor, porque lhe negas
             Abril ?!

Até parece que o Guerra Junqueiro estava a ver o 25 de Abril e toda a escória de ladrões que se aproveitam do 25 de Abril para roubarem com o à vontade que se sabe, pois sabem que ninguém lhes vai aos costados. Até um dia! ...