sexta-feira, 15 de agosto de 2014

1458 - «ORFEU» POEMAS POLÍTICOS - PAUL ÉLUARD

1458

ORFEU

Ah, abandonarei agora o amigo que é penoso no-mear, como se ele não fosse ler o que aqui escrevo. A partir deste momento, falarei apenas  de um certo Orfeu, devem conhecer, que tinha descido aos Infernos mas viria a sair  sòzinho. E lá longe, atrás dele, se ia desvanecendo a imagem da morta, Eurídice, presa na margem infernal... Que sabemos nós acerca de Orfeu quando regressou ao céu público, o céu de todos os homens? Sabemos que percorreu os montes Rifeu e que desceu as neves de Tanaís. Os seus cantos não chegaram até nós e, tanto quanto os posso imaginar, deviam manter o timbre infernal. Aquele lamento de Gluck(1) que representa, na ópera fabulosa, a área da coragem, talvez...Orfeu encontrara de novo o céu de onde toma a neve ou o sol abrasador das Bacantes, mas não tinha conseguido reencontrar os homens nem compreendera que, para eles, o céu e o inferno são uma e a mesma coisa: e a isso chama-se Terra.
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(1) N.do T. - Christopher Willibald Gluck (1714-1787);  compositor alemão, autor das óperas:
Orfeu, Alcestes, Armida,  Efigénia em Áulida, etc.

  
Quando a futura grandeza de Paul Éluard existir enfim, saber-se-á que era nisto que ela residia. Nem Rimbaud nem Orfeu, mas um homem que reencontrou a Terra.

    Deixai-me pois julgar do que me ajuda à vida.
    Eu trago a esperança aos homens que estão fartos
   Mau grado as alegrias robustas do amor.

    O que o ajuda à vida, é ajudar os outros a viver.
E isto não tinha Orfeu imaginado. Tanto pior para
a ópera fabulosa


O CASAMENTO ENTRE O CÉU E O INFERNO

     A este respeito penso em William Blake. E numa imagem de Blake onde vê o inferno, o inferno romântico, desenhado por ele, não segundo as visões  do seu céu secreto, mas a partir
de uma oficina metalúrgica real, com os operários do País de Gales diante do forno depudelar (1).
     Do horizonte de um homem ao horizonte de
todos é, primeiro que tudo, do inferno de um homem ao inferno comum.



        Há os maciços da cor do sangue em Espanha

        Há os maciços da cor do céu na Grécia
        O pão o sangue o céu e o direito à esperança
        P´ra todos os sem mal que o mal odeiam.


(1) N. do T. - Forno onde se procede à purificação
do ferro fundido

        Quer o queiramos quer não. E, no fim contas, as Bacantes triunfam sobre Orfeu. E Nerval (1), se tivesse sabido isso, ter-se-ia  ido inforcar no candeeiro? Quanto ao jovem Rimbaud, apenas encontrou Harrar, essa derrota, essa irrisão (2). Não souberam unir o céu e o inferno. Não souberam reconhecer, opostos e semelhantes, os seus inferno e céu no céu-inferno
de todos os homens. Desconheciam que a vida é a
luta, pois aceitaram a fuga, a derrota e a morte.
Desconheciam que a vida é a união dos contrários, que só na morte se separam. Aliás, foi unicamente na morte que os homens imaginaram estas duas coisas que não existem separadas, o céu e o inferno. O casamento entre o céu e o inferno é a vida, que é a luta do anjo e do demónio. A vida, que é o homem.
      E aqui reaparece Paul Eluard. Com ele, com o seu exemplo, é posto ponto final a qualquer coisa. No vestiário da História é pendurada uma certa concepção de poeta. Já nada poderá obstar a que a velha contradição tenha sido ultrapassada: o sonho e a acção , o céu e o o inferno, a poesia pura e a política... Porque o casamento entre o céu e o inferno tem um nome actual: política, a palavra grega que Orfeu não soube dizer às Bacantes, a injúria que os poetas do passado não se atrevem a pronunciar, a solução
comum para o problema de um homem e de todos, o horizonte de
um homem e de todos, o terceiro termo onde se resolve enfim a
contradição, a grande lei da luta, o princípio vital, o fogo de
Heráclito (1).


(1)  N.do T. -- Gérard de Nerval, poeta françês, nascido em 1808,
suididou-se em 26 de Janeiro de 1885, enforcando-se num candeeiro de iluminação pública. Autor de várias obras de poesia e prosa, entre elas Aurélia e Les filles du feu

(2) N.do T.-- Rimbaud, cuja obra foi escrita, na sua totalidade,
entre os dezasseis  e os dezanove anos, exilou-se voluntáramente de
França e da poesia, indo para Harrar, cidade da Etiópia, onde levou
uma vida trágica e obscura.






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