sábado, 2 de abril de 2011

34-Seres decentes

34-Quando cumpria o seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei especialmente congeminada contra si . O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência » públicas que viesse a receber.
Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a qual descontara durante toda a carreira. O desconforto de tamanha injustiça  levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, hà pouco se pronunciaram a seu favor. Como consequência foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze anos, com rectroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros. Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro.
Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem a todos.
As pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de ânimo em altura de extrema pungência cívica de dolorosíssimo abandono social.
Antes dele só Natália Correia  havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um pedido de pensão por mérito intelectual que a Secretaria da Culturta (sob a responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português entender que a mereço », justificar-se-ia »agradeco-a e aceito-a. Mas pedí-la, não, Nunca!»
O silêncio caido sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e primeira páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.
"A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção", dirá. Torna-se indispensável  "preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora".
Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões de honra, da integridade, foram-lhe\sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta - acrescentando os outros.
"Senti a marginalização  e tentei viver", confidenciará, "fora dela. Reagi como tímido, liderando".
O acto do antigo Presidente («cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral  que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas notáveis crónicas  Baptista Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida ética.
Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade  decisivo para continuarmos a respeitar-nos - condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.
Fernando Dacosta

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