segunda-feira, 17 de março de 2014

1346 - JEITO DE ESCREVER - IRENE LISBOA

1346

            JEITO DE ESCREVER

Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de  mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.

Não sei que diga, não sei que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?

Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto --                                                                         [o jeito

Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este                                                     [sereno luto das horas.
Mortas!
E por mais não sei ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!
Assim: 
uma das mãos no papel, dedos fincados, solta a
                                  [outra, de pena expectante.

Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão
Me cerro.
E tudo acabou, acaba.
Para que a busca das coisas novas, à toa e há roda?
Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro
Ó minha derradeira composição! do não, do nem,
                             [do nada da ausência e solidão.
Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indifereça ilimitada.
Noite vasta e continua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.

Irene Lisboa


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